Este texto foi escrito em conjunto com Luiza Carvalho e Maisa Freitas.*
Como forma de favorecer o orçamento, muitos(as) realizadores(as) optam por contar uma história em apenas um cenário. Em 1948, Hitchcock nos traz Festim Diabólico, onde acompanhamos, aflitos, o desenrolar de um jantar cujos anfitriões são assassinos e a vítima está escondida dentro de um baú no meio da sala. Assim como também vemos em Deus na Carnificina (2011) ou É Apenas o fim do mundo (2016), o elemento de tensão é de extrema importância, já que estaremos em um único ambiente o tempo inteiro e poderíamos facilmente nos entediar. Essa construção é muito bem trabalhada no primeiro longa da canadense Emma Seligman, que usa de um desenho sonoro perturbador e uma câmera inquieta que acompanha o tempo inteiro Danielle, nossa protagonista, interpretada por Rachel Sennott.
Sem dúvida, uma das fases mais difíceis da vida é a adolescência, em que somos pouquíssimo compreendidos. Mas o momento em que nos sentimos mais perdidos é, talvez, o momento de transição de adolescente para adulto. Nós, mulheres (cis ou trans), temos ainda uma grande questão: o que é ser mulher? Quando deixamos de ser "menina" para nos tornarmos "mulher"? E esse é um dos pontos do filme de Seligman. Danielle, assim como a personagem de Isabelle, em Jovem e Bela (2013), de François Ozon, encontra, no meio da prostituição, a possibilidade de descobrir o seu corpo e o poder que ele pode exercer. Ambas vivenciam o mesmo período de explorar e entender as suas potencialidades.
Em meio a tudo isso, ter que lidar com a família que ainda nos enxerga como criança e a enxurrada de perguntas clássicas dos encontros familiares, como "o que vai fazer da vida agora?" ou "e os namoradinhos?"... Isso tudo é muito bem ilustrado pela diretora através das personagens cuja verossimilhança nos faz facilmente relacionar com alguém que conhecemos. O clima é ainda mais intrigante, usando o cômico de maneira afiada, pelo fato do filme ambientar-se em um velório, e a família ser judaica, algo vivenciado pela própria diretora, como conta em entrevista à plataforma MUBI.
A própria Danielle é um fator que traz comicidade à obra pela sinceridade e sarcasmo dela diante dos acontecimentos que se sucedem. O filme é Danielle. Ela é a prima rebelde, e não está preocupada em esconder isso. A maior preocupação da nossa protagonista é em ser vista como adulta pelos demais adultos, coisa que ela falha em fazer na maior parte do tempo.
Com todos esses fatores que reforçam a comicidade da trama, esta, que, por si só, já apresenta uma gigantesca dose de caos, se torna tão tensa que o filme passa a se assemelhar a um filme de terror antes do jumpscare. As cenas de maior tensão, que constituem grande parte da obra, são similares às de filmes de suspense. Ao passo em que a trilha sonora se intensifica, é de se imaginar que qualquer diálogo presente na cena seja abafado e se torne inaudível para que a música tome seu espaço. Em ‘Shiva Baby’, porém, isso não acontece. A conversa continua acontecendo ao fundo, e o espectador inconscientemente para de prestar atenção nela, voltando seu foco apenas para a protagonista que, nesses momentos, é quem detém o maior enquadramento. Enquanto a câmera se movimenta de maneira agitada, a tensão aumenta ainda mais, já que Danielle fica calada enquanto suas expressões corporais e os movimentos da câmera fazem todo o trabalho para garantir a aflição necessária no plano. Nesses momentos, assistir ao filme nos dá a sensação de estar olhando uma bomba-relógio prestes a explodir.
Entre seu humor ácido/escabroso e a aflição concedida pela trilha, de Ariel Marx, ‘Shiva Baby’ se mostra, indubitavelmente, um filme de seu tempo: se recusa, em formato e temática, a caber em uma caixa, passeando por diferentes gêneros em sua forma mais aguda, e despertando emoções conflitantes em seu público. Desenvolvido a partir de um curta-metragem de Seligman realizado anos antes como trabalho de conclusão de graduação na New York University, o longa é, acima de tudo, autoconsciente e transparente - e por isso, é complexo. Coloca sua protagonista sob um microscópio, e, dessa forma, expõe-nos a nós mesmos.
Não menos importante, vale destacar o filme como um documento de tempos pregressos, em que ritos de passagem e ocasiões marcantes eram comemorados em bando, em famílias judaicas ou não. O shiva, lotado, por vezes labiríntico, parece encapsular um passado distante - mas também dá destaque a temas positivamente pandêmicos e atuais: a claustrofobia social e a dificuldade de conviver que nos é inerente.
*Exercício realizado para o curso de Crítica da Academia Internacional de Cinema, ministrado por Filippo Pitanga.
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