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Foto do escritorLuisa Melo Guerrero

Ser mulher: uma reflexão a partir do filme Barbie, de Greta Gerwig


Margot Robbie em Barbie (2023)

Quando eu era criança, meu mundo era rosa. Minha cor favorita, 90% do meu armário, minhas roupas de cama, o tapete do meu quarto e outras partes de decoração e acessórios pessoais eram rosa. Isso era tão forte que, se eu aparecia em alguma festa de família usando qualquer outra cor, meu tio me perguntava o que havia acontecido e se eu estava bem.


Em algum momento, não lembro exatamente qual, tudo mudou drasticamente: passei a detestar rosa. Aos poucos, fui me desfazendo de tudo e passei a comprar coisas novas para não precisar mais ver aquela cor na minha frente. Passei até a ficar irritada com o meu tio, pois eu não queria, de jeito nenhum, ser associada ao rosa.


Hoje consigo ver com mais clareza. A cor rosa é convencionalmente associada a meninas, e foi esse o meu problema em algum momento da puberdade: eu não queria ser menina, queria ser mulher. Nessa fase, as pessoas te falam o tempo todo que você está se tornando uma mulher, mas ainda te tratam como criança. É terrivelmente confuso. Abolir o rosa da minha vida foi uma tentativa de vencer essa corrida para atingir o patamar “mulher”. Mal sabia eu que essa questão me acompanharia por muitos e muitos anos.


Hoje fui assistir ao filme Barbie, de Greta Gerwig. Logo no início somos apresentados ao fato de que a Barbie foi a primeira boneca “mulher”. Mas, afinal, a pergunta de um milhão de dólares: o que é ser mulher? É sobre atingir a idade adulta, a maioridade? É sobre ter um corpo e altura ideais? Tornar-se mãe? Ou é sobre ter autonomia financeira, algo que Barbie tanto representa? Não é possível que seja na puberdade. Ou é? A questão que sempre me atormentou, e por vezes ainda atormenta, é descobrir em que momento passamos por esse portal mágico em que deixamos de lado a menina, e nos tornamos mulher.


Não, certamente não existe uma resposta ideal e incontestável para essa dúvida. Afinal, são tantos corpos, tantas vivências e diferentes experiências, que seria impossível, e até injusto, tentar encaixar em uma única definição. Entretanto, o filme de Greta Gerwig me trouxe uma certa luz no fim do túnel, e provavelmente por isso me emocionou tanto.

Margot Robbie em Barbie (2023)

Eu poderia aqui fazer uma análise mais superficial do filme, apontar as referências a 2001: Uma Odisseia no Espaço, Matrix e musicais de Hollywood. Poderia ressaltar como Gerwig e Noah Baumbach, que também assinou o roteiro, escolheram unir elementos das jornadas do herói e da heroína para contar essa história. Falar sobre como o filme brinca com o próprio filme e os problemas dos estereótipos reproduzidos pela boneca não são deixados de lado, entregando uma comédia afiada que tem sacadas inteligentes sobre temas atuais. Tudo isso, entretanto, não me parece necessário, pois tenho certeza de que as pessoas ainda vão falar muito sobre todos esses pontos.


Hoje eu quero falar sobre o que eu senti, porque pode ser que alguém se identifique. Eu quero falar sobre como eu me emocionei em apenas alguns minutos após a projeção começar, pois voltei à infância. Quero falar sobre como a personagem Barbie, de Margot Robbie, descreve tão bem o assédio, algo que eu já senti várias vezes, mas nunca pude explicar. Eu quero falar sobre os sentimentos conflituosos em relação à própria Barbie que por um lado, é um símbolo da independência feminina, mas por outro, replica padrões de beleza que nos aprisionam há décadas.


As personagens de Gloria e Sasha, mãe e filha do mundo real, são pouquíssimo exploradas (grande erro do filme), mas abrem margem para reflexões. A filha é aquela que já saiu da fase de brincar com bonecas e está com raiva de tudo, inclusive da mãe e, muito provavelmente, da cor rosa. Já a mãe volta-se à boneca e aos desenhos, depois de tantos anos, para resgatar algo que foi perdido. Essa dualidade é muito forte e presente dentro de nós. Foi provavelmente por isso que passei a vida me frustrando: eu tentei anular uma delas. É impossível separar a menina e a mulher, pois as duas são uma só. Assim como a Barbie ("mulher") reflete a menina que brinca com ela, e vice-versa.

Margot Robbie em Barbie (2023)

Um dos elementos que todo o mundo estava há um ano esperando para ver, depois de tantas fotos e antecipação, era a Barbielândia. Um mundo governado por mulheres, onde elas estão presentes nos mais altos cargos e todas são proprietárias de casas, carros e roupas fantásticas. Essa é uma das revoluções que a boneca trouxe ao mundo. Antes, as meninas brincavam com bonecas bebês, como em um bizarro treinamento para a maternidade. Quando Barbie chega ao mundo, ela traz uma nova percepção, abre o caminho para novos sonhos e novas possibilidades.


A Barbielândia é perfeita para nós porque é o oposto do mundo real. Assim como ilustra bem o filme, basta alguns segundos andando na rua para sermos assediadas. Apenas a nossa existência é carregada de uma instantânea objetividade e imposição de milhares de preceitos. Isso também é explicitado pela personagem de Gloria, quando fala sobre as contradições de ser mulher. Para muitos, pode parecer um discurso clichê, mas a verdade é que ele continua sendo perturbadoramente verdadeiro.


Desejando dar um fim a este texto, preciso dizer que o que senti assistindo a Barbie, de Greta Gerwig, foi uma imensa gratidão pela existência do filme, assim como da diretora, que conseguiu chegar aos grandes estúdios de Hollywood e entregar uma obra autoral e relevante, que ao mesmo tempo é divertida e toca em assuntos tão sensíveis e profundos para nós.


Mesmo que ainda um pouco perdida, e provavelmente continuarei assim por muitos anos, o filme me presenteou ao me levar um pouco mais perto da resposta para a pergunta que fiz ao longo de toda a minha vida. Ser mulher talvez tenha a ver com essa liberdade de ser/poder/ter/querer o que nós quisermos. Talvez seja sobre aceitar e acolher a menina e a mulher que coexistem dentro de cada uma de nós. Talvez seja tudo isso e muito mais. Barbie me ensinou isso.

4 comentários

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4 Comments


Fernanda Cardozo
Fernanda Cardozo
Jul 22, 2023

É exatamente isso! Vc conseguiu descrever todos os sentimentos que vão brotando a medida que o filme avança! E o cinema não é sobre isso, sobre sentimentos que nos despertam?

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Luisa Melo Guerrero
Luisa Melo Guerrero
Jul 22, 2023
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Feliz demais em ter gerado essa identificação, também acho que o cinema é sobre isso! Muito obrigada pelo comentário <3

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biancalobopsi
Jul 21, 2023

Que texto lindo e emocionante!

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Luisa Melo Guerrero
Luisa Melo Guerrero
Jul 22, 2023
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Obrigada!! Fico feliz que gostou <3

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