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Foto do escritorLuisa Melo Guerrero

Beau Tem Medo (2023)

*Contém spoilers

Ari Aster vem ganhando notoriedade desde o início de sua carreira, com o horror psicológico Hereditário (2018) e o bizarro Midsommar (2019). Quem assistiu também aos seus primeiros curtas-metragens já conhece bem a tendência do diretor de explorar relações familiares conturbadas. Algo que, inevitavelmente, nos identificamos em algum nível, e por isso seus filmes podem ser tão desconfortáveis.


Em seu novo longa-metragem, o diretor explora o inconsciente, justamente o lugar onde armazenamos todos os medos e traumas gerados (principalmente) na infância. Apesar de não ser um filme surrealista, Beau Tem Medo é uma amálgama de alegorias, metáforas e diferentes situações que requerem um certo desprendimento da lógica e da realidade. Foi neste ponto em que acabei pecando: passei uma boa parte tentando entender o que estava acontecendo. Na verdade, acho que foi um pouco mais profundo. Por vezes, acabei me identificando com personagens, sensações e sentimentos, o que gerou, além de desconforto, uma luta interna para entender o motivo.


Fato é que este é um filme é uma avalanche, e o ideal é assisti-lo sem lutar contra ele, pois você vai perder. Foi também por cometer esse erro que saí do cinema psicologicamente exausta. Com a mente a mil por hora, só consegui melhorar quando cheguei em casa e enchi três páginas de interpretações e análises sobre o filme. Foi aí que percebi que eu não precisava ter feito tanto esforço antes. Enfim, vivendo e aprendendo.


Bom, chega de relatos pessoais e vamos ao filme.


Começamos o longa com a ambientação da vida de Beau (Joaquin Phoenix), um homem sozinho e extremamente medroso, como o título indica. Aliás, a primeira sequência é fantástica. Ouvimos sons confusos e agitados, que remetem a algum tipo de conflito, e logo descobrimos ser um parto. Uma escolha perspicaz do diretor: abrir o filme com o momento em que a vida inicia, e junto a ela, todos os nossos traumas. Sim, eles começam ali mesmo, antes de conseguirmos respirar pela primeira vez.


Somos levados diretamente dali para a terapia, o lugar que recorremos para entender a origem desses traumas. É lá que o cineasta também aproveita para fazer uma crítica ao uso exagerado de medicamentos fortes que podem causar efeitos colaterais terríveis, através de um psiquiatra (Stephen Henderson) que exala um certo nível de empolgação para prescrevê-los. Esse recurso é também usado durante o filme como um gancho para entrar no mundo do subconsciente, e desencadear as imagens alegóricas apresentadas pelo filme.


Durante a análise de Beau, temos um momento um tanto quanto autoexplicativo, onde o diretor quer deixar registrado um dos temas principais da história, utilizando o personagem do psiquiatra, que escreve em seu caderno: culpa.


Em seguida, o filme nos leva para o local onde Beau mora, um bairro bastante perigoso, mas cuja violência é extremamente amplificada pelo pânico vivido pelo personagem. Aqui, o diretor consegue transmitir exatamente a sensação de paranoia, pois qualquer pessoa que já sentiu isso, pode facilmente se identificar. Um mero atravessar de rua para comprar água se torna um desafio gigante quando estamos dominados pelo medo.


É logo nesse início de filme que começamos a perceber que nosso protagonista não é totalmente confiável, já que fica difícil distinguir o que real e o que está sendo alterado por sua mente conturbada. A partir daí, tudo começa a escalar.


Beau se vê preso em situações o tempo inteiro. Primeiro, ele precisa ir visitar a mãe, mesmo estando visivelmente desconfortável com isso. Depois, ele se vê preso em casa por ter tido sua chave roubada (o que pode ter sido um mecanismo de defesa dele próprio para não sair). Em seguida, fica preso do lado de fora de seu prédio e, por fim, preso com a notícia da morte de sua mãe, o que também amplifica o sentimento de culpa por ele não ter saído antes de tudo.

O protagonista constantemente é infantilizado e se depara com figuras maternas e acolhedoras, seja a mãe que perdeu um filho, ou uma misteriosa mulher grávida que encontra na floresta. A primeira o leva para sua casa, um ambiente aparentemente seguro onde, novamente, temos o uso exagerado de remédios e drogas alucinógenas que contribuem para confundir nossa percepção do que é real. É por aí que revisitamos o passado do personagem pela primeira vez, e entendemos como sua mãe era extremamente protetora. Essa proteção exagerada fez com que ele reprimisse, dentre outras coisas, os seus desejos sexuais e sua coragem, dois elementos que serão encontrados ao final do filme, no sótão, que serve de alusão para o inconsciente.


Em outro momento, a mulher grávida o leva para uma espécie de comunidade que se formou na floresta, onde estão realizando uma peça de teatro. Aqui, Beau experimenta a catarse definida por Aristóteles: através da arte (principalmente peças teatrais), experienciamos uma descarga muito forte de sentimentos, vivendo situações que jamais aconteceram. O protagonista, então, imagina uma vida e uma trajetória impossíveis, uma realidade onde ele teve uma esposa e filhos. Até que os filhos o lembram de que ele não poderia ter um orgasmo, ou morreria (resultado de sua sexualidade reprimida), o que o traz de volta para a realidade.

Chegamos ao clímax do filme, onde temos a revelação não tão chocante de que a mãe (Patti LuPone) está viva, e digo isso pois era previsível que uma pessoa tão manipuladora (e podre de rica) seria capaz de usar tudo o que tem para conseguir o que deseja. Entretanto, um diretor tão experiente em relações familiares, não retrataria a figura materna como uma simples vilã. Por isso, apesar de aqui descobrimos até que ponto ela pode chegar, é também aqui que temos a compreensão dessa mulher que é, antes de tudo (antes mesmo de sua primeira respiração), a filha de alguém. A personagem verbaliza toda a dor de não ter se sentido amada pela mãe, não importa o quanto ela se esforçasse.


Através das nossas escolhas, nós sempre buscamos, mesmo que inconscientemente, atingir às expectativas que nossos pais colocaram sobre nós, e quando sentimos não foi o suficiente, isso gera um vazio gigantesco. Foi esse vazio que a mãe de Beau tentou preencher quando criou seu filho. Ela deu todo o amor e dedicação que tinha dentro de si, com o objetivo de receber de volta o amor que faltou de sua própria mãe. Mas isso nunca aconteceu, pois esse vazio não pode ser preenchido por ninguém, além de nós mesmos. É como um ciclo infinito. E, ao perceber que continuava vazia, ela interpreta a necessidade de independência do filho como ingratidão e joga toda essa culpa em cima dele, o responsabilizando por sua dor.


Com um final característico de Ari Aster, que tende ao pessimismo, temos um julgamento, alegoria final e mais inteligível do filme, onde o réu é o protagonista, e a culpa é a única condenação possível para Beau, que foi completamente consumido por ela.

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