O período que ficou conhecido como Nova Hollywood, a American New Wave, é também chamado de década dos diretores. Sim, no masculino mesmo. Isso porque, nesse momento, emergiram cineastas que marcaram a história do cinema para sempre, como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Stanley Kubrick, Brian De Palma, e por aí vai. É realmente impressionante a quantidade de cineastas que construíram carreiras (de qualidade) e desenvolveram suas autorias nesse momento. No entanto, quando se pesquisa sobre o assunto, é praticamente inexistente qualquer menção a mulheres diretoras.
Em algumas exceções, quando se importam em mencionar um nome feminino, trazem à tona Elaine May, importante cineasta, roteirista e comediante conhecida por seu estilo satírico e irônico. As fontes parecem contentar-se em ressaltar apenas uma mulher. Nesse meio, acabou ficando obscurecido o nome de uma realizadora que, infelizmente, faleceu muito cedo e nos deixou apenas um longa-metragem. Este único filme, entretanto, é construído de forma singular e passível de inúmeras reflexões.
Barbara Loden é o nome da responsável por dirigir, roteirizar e protagonizar o brilhante Wanda, de 1970. Ainda no início da Nova Hollywood (apenas três anos depois do lançamento de Bonnie & Clyde, definido por muitos como o inaugurador desta era), a diretora americana apresentou e privilegiou o mundo cinematográfico com uma obra autoral, subversiva e fundamentalmente feminista.
Wanda Goronski (Loden) é uma personagem que passa longe de cumprir as expectativas e esterótipos atrelados às mulheres de sua época: dorme com homens desconhecidos, vive bebendo cerveja, não se importa com o marido e tampouco com os filhos. Por vezes, duvidamos da sua capacidade de sentir qualquer coisa, algo constantemente sugerido através da inexpressividade e olhar desinteressado da mulher.
Apesar disso, nos conectamos profundamente com Wanda, lamentamos por seu vazio, queremos acompanhá-la, ficar por perto, ampará-la. A delicadeza com que Barbara Loden interpreta essa personagem, construindo uma mulher que descobrimos, aos poucos, ser extremamente profunda, é fantástico.
Wanda é, de fato, uma pessoa desleixada que constantemente esquece onde colocou sua carteira. Ausente de qualquer aspiração ou desejo, ela parece realmente viver a frase “deixa a vida me levar”. Isso tudo é, entretanto, um reflexo da situação dos Estados Unidos naquele período, muito bem ilustrada com longos planos da área industrial, imagens da classe trabalhadora e na cena em que Wanda vai questionar um pagamento incompleto que recebeu. Este é um dos poucos momentos em que vemos a mulher realmente demandando por algo. Rapidamente, nos é apresentada a dura realidade: as taxas e descontos na folha de pagamento dos trabalhadores subtrai mais da metade da remuneração.
Quando a protagonista tenta pedir uma oportunidade de emprego, escuta que não seria possível, pois ela é muito lenta. Wanda nunca se encaixaria na necessidade de velocidade descontrolada do mercado. A questão que fica é: onde, então, ela se encaixaria? Percorre todo o filme essa ideia de que parece não existir um lugar no mundo para esta mulher. Sendo assim, ela encontra nos homens uma solução para conseguir se alimentar, beber suas cervejas e conseguir um lugar para dormir, já que também não tem uma casa. Aliás, sua única posse no mundo é a bolsa branca que a acompanha até o final.
Se o filme tem um ritmo monótono, espelhando a vida da personagem, ele encontra uma forma de nos surpreender quando, de repente, percebemos que Wanda adentrou uma cena de crime. É quando conhecemos Dennis (Michael Higgins), um homem agressivo e autoritário que vai acompanhá-la pelo resto do filme. Ao contrário de Wanda, Dennis é alguém que almeja conseguir muito dinheiro, optando pelo caminho fora da lei. Diferente, porém, daquela energia justiceira que aparece em Clyde, no filme de Arthur Penn, este é um homem egoísta e mesquinho. Dennis enxerga Wanda como um objeto, e não de uma forma sexual, apenas como uma coisa. Uma existência da qual ele pode se aproveitar, mas faz pouco caso.
A dupla é o exato oposto de Bonnie e Clyde (a própria diretora declarou que o filme é “anti-Bonnie e Clyde"). Aqui, a relação é de submissão e posse. Nenhum dos dois faz questão de estar com o outro, mas continuam juntos por conveniência. Dennis constantemente sugere que Wanda se modifique, mude seu cabelo, coloque um chapéu, troque de roupa. Ele é a imagem de toda uma sociedade moralista que vive pelas aparências e é movida pelo desejo de consumo. Isso é explicitado de maneira brilhante em um diálogo entre os dois, onde Dennis afirma que “se você não tem nada, você não é nada. É melhor estar morto. Não é nem cidadã dos Estados Unidos”, evidenciando seu caráter materialista (que é, também, um resultado de seu meio). Exalando conformismo, Wanda responde: “acho que estou morta, então".
Ao jogar as coisas de Wanda pela janela do carro, Dennis demonstra a completa desconsideração pela existência dessa mulher que, por sua vez, não vê outra opção além de aceitar esses abusos, já que depende daquela pessoa. Wanda é justamente o retrato das pessoas que são invisibilizadas e desprezadas pelo Estado, mas que precisam e dependem do mesmo. Por outro lado, Dennis precisa dela na mesma medida, pois não conseguiria fazer tudo sozinho. Essa relação de mútua necessidade é também uma alegoria presente no filme.
Através de apenas dois personagens, Barbara Loden faz algo genial. Ela aborda o tema do relacionamento abusivo, dominância/submissão, homem/mulher e correlaciona com a dinâmica Estado/sociedade. Escancara problemas sociais, econômicos e de gênero. Apresenta uma mulher que não existe para cumprir expectativas de maternidade ou casamento, assim como a classe trabalhadora não existe para satisfazer as vontades das classes mais altas. Ela não tem desejos, e mesmo assim continua existindo. É uma existência quase desafiadora. O que faz valer uma vida? A vida de Wanda é menos importante? Nos faz refletir sobre quais são os critérios que levam o Estado a considerar uma parcela da sociedade, e ignorar completamente a outra.
É, de fato, surpreendente que Loden tenha feito um filme de estreia tão complexo, ainda mais em um momento em que a própria produção de cinema independente era bastante complicada. Nesse terreno de adversidades, ela encontrou uma forma de construir uma narrativa cheia de nuances e sobre a qual podemos interpretar, debater e conversar por muito tempo. É essencial que resgatemos nomes valiosos como o de Barbara Loden e sua brilhante Wanda.
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