No mais novo filme de Luca Guadagnino, ‘’Queer’’, o diretor transcreve a imagens em movimento o livro do escritor William S. Burroughs, escrito em 1952 e apenas exibido ao público mais de 30 anos depois, devido a temática homossexual. Apesar de em alguns de seus longas anteriores já ter explorado tal tema, o que continua a impressionar é a sensibilidade de Guadagnino em apresentar a ordinariedade das relações queer, enquanto levanta os infortúnios exclusivos de se viver em uma sociedade onde ainda é necessário se expressar com cautela.
Em meio a mapas, agulhas e escritas, conhecemos William Lee (Daniel Craig), viajante que encontra-se no México, dividindo seu tempo entre a escrita, drogas e encontros. Nos primeiros deles, sempre casuais, é possível observar a culpa que permeia seus vínculos. A religião como motivo de esconder-se, a imagem de Maria ao lado da mesa, aludindo a culpa cristã que implica no que é considerado pecado ou não. A culpa sempre está lá. Mas tudo transfigura-se quando os anjos cantam. Ao som de ‘’And the Angels Sing’’ de Benny Goodman, Eugene (Drew Starkey) emerge e o que era difícil se torna fácil.
A conversa flui e os sapatos são deixados no chão, ele veio para ficar, pelo tempo que tiver que ficar. Mas engana-se quem pensa que adentrou a sala de cinema para assistir a um filme de amor. Apesar da premissa romântica, o longa de Guadagnino vai mais fundo nas complexidades que uma relação entre duas pessoas pode apresentar. Eugene é quente e frio, não deixando claro o que sente por Bill. O carinho existe, mas será que é amor?
‘’A parte difícil é convencer outra pessoa de que ela é parte de você.’’
Há também a marcante presença de uma lacraia, que se manifesta em diferentes formas ao longo do filme, tanto em sua forma real quando no pingente do colar de Eugene. Não há muita informação sobre seu simbolismo espiritual, mas acredita-se que o aparecimento do animal possa sugerir a necessidade de prestar atenção aos sentimentos, que importantes mudanças ou a necessidade de purificação estão por vir. É comum querer ir em busca de respostas quando se há dúvidas, mas é importante ter em mente que muitas vezes o que se acredita ser um portal, é na verdade um espelho.
Um dos pontos de destaque do longa, entre tantos outros, é a trilha sonora, selecionada a dedo e confeccionada com precisão a fim de construir a atmosfera de incertezas e prazeres do longa, transitando do jazz ao indie, da eletrônica ao soul e agradando a gregos e troianos. Repetindo a parceria feita em ‘’Rivais’’ (2023) e ‘’Até os Ossos’’ (2022), Trent Reznor & Atticus Ross da banda Nine Inch Nails são os responsáveis pela trilha original, completamente distinta dos filmes anteriores, mostrando versatilidade e total comprometimento em contribuir ao clima necessário. Em adição, a faixa ‘’Vaster Than Empires’’, em português ‘’Mais Vasto que Impérios’’, traz a voz do cantor brasileiro Caetano Veloso. O diretor compartilha que a canção teve sua letra composta a partir da última entrada do diário de William S. Burroughs, escrita três dias antes de sua morte: “nosso amor crescerá mais vasto que impérios”.
A performance de Daniel Craig (007 - Operação Skyfall) ao interpretar Bill é encantadora e cativante. Em um papel que foge de seu habitual de galã que exala masculinidade, o ator se mostra profundamente versátil e cuidadoso com os personagens aos quais retrata. Ele divide os holofotes com Drew Starkey que, em um de seus primeiros papéis de destaque, não deixa a desejar. Ele dá vida ao enigmático e reservado Eugene, que demonstra suas emoções muito mais pelo olhar do que por palavras. É também a estreia do cantor Omar Apollo nos cinemas que, em uma performance ainda contida, contribui de forma satisfatória para a narrativa.
A percepção que fica ao assistir ‘’Queer’’ é de que estamos adentrando as memórias de Bill. Nem tudo é claro e alguns fatos que desejamos saber não são revelados. Ao longo do tempo, muitas informações são perdidas pelo grande armazenador de lembranças chamado cérebro. Com altas doses de sensualidade, bom gosto e elementos surrealistas, Guadagnino executa com maestria a hermética tarefa de transmitir sensações e constrói um filme altamente sensorial sobre a relação entre dois homens e, acima de tudo, a relação de um homem com si mesmo. Um delicado ensaio sobre a sexualidade e sobre o agonizante desejo de se fundir com outra pessoa.
Comments